A graça da vida

- Seu merda, seu puto!!! – gritava ela enquanto o estapeava e o empurrava para fora do sofá, para fora daquele apartamento, para fora daquele mundo são em que ele se mantinha. Empurrava-o para a histeria, para que eles pudessem gritar juntos e formar um “nós” que fugisse do clichê da água-com-açúcar, com seus timbres roucos que ressoariam pelos metros cúbicos estreitos e arranhariam-lhes a garganta.

Mas ele era irritantemente casual. E quando se levantou decidido, não foi para jogar palavras doídas, tirando o chão e a fazendo chorar por dias trancada. Foi para lhe pegar com força os cabelos da nuca, dando-lhe um beijo histérico, jogando-lhe no sofá e arrancando-lhe a roupa com uma raiva e gritos mudos.

“Seu merda, seu puto.” Era o que ela repetiria no dia seguinte. Com o sentido diferente, foi o que ela sussurrou no ouvido dele quando eles acordaram devido à claridade que tomava o ambiente horas depois. Ele era um escroto por deixá-la o amar. Ela era uma escrota por não deixá-lo resistir.

Vai embora, sem despedidas, sem deixar rastros ou dar as caras novamente, era tudo o que ela não queria. Era isso que a fazia acordar suando frio todos os dias. E era justamente tudo o que ela precisava. Ela reaprenderia o significado de sanidade, distração, sobriedade, independência emocional.

Então, qual seria a graça da vida? Que utilidade teriam as borboletas se não fossem para fazer cócegas no estômago? Que função teriam as palavras senão indispensáveis coadjuvantes?

Ele sorriu para ela enquanto reparava nos olhos borrados da noite anterior. Ela deixou escapar um sorriso ao pensar que não estava se sentindo arrependida por acordar com ele, afinal, foi tudo previsto. Ele se levantou, colocou a calça, vestiu a blusa listrada, e sem falar nada se foi, batendo delicadamente a porta atrás dele. Ela então se espreguiçou meio a risinhos realizados. Até porque ele ia voltar. Ele sempre voltava.

3 comentários:

  1. Seus textos são tão íntimos, parecem até autobiográficos.

    Sim, ela foi escrota por deixá-lo amá-la. Ela foi escrota por amá-lo. Ela sabe que não deveria. Mas dever nunca traduziu-se para querer, para realidade, para o concreto. No fim, há uma graça, uma felicidade nas borboletas no estômago, no friozinho na barriga, no arrepio de sentir o hálito quente na nuca.

    Ele sempre voltava. E ela sempre deixava-o voltar.

    Bonito.
    E, olha, você tem um rosto (vide foto)! rs

    Abraços =*

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  2. Esta corda bamba quem segura são as borboletas...

    Mas a linha fina da sanidade e sobriedade fica da espessura da razão, ou será que nem existe mais? hehehe

    Eu sou suspeito para comentar textos deste cunho.

    Aprecio o peito aberto, o grito latente! :)

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